quinta-feira

a carta

desci até a portaria preocupado com o fato de não receber correspondência nenhuma há nove dias, preocupado não com a correspondência em si mas com a carta semanal que ela me mandava e com a qual eu contava para manter o ânimo e ter o que comer, a porta do elevador abriu com violência e o porteiro me encarou como se já soubesse de tudo, o que talvez fosse verdade, e ele disse apenas uma palavra seca, uma única palavra desprovida de acompanhamento mas cheia de significado, o filho da puta disse “nada!”, assim dessa maneira, com ponto de exclamação, com gravidade, com secura ele disse “nada!”, assim como quem espeta, assim como quem enfia lentamente, saboreando, uma agulha de costura no corpo moribundo, e então, no meio desse silêncio fora da minha mente, o uniformizado perguntou “algo errado?” e foi aí que o classifiquei de real filho da puta sarcástico, pois pra mim ficou claro, ficou evidente que ele se regozijava, que ele se refestelava na ironia, porque, é preciso dizer, é claro que ele sabia, é claro que ele debatia mentalmente a minha vida de capim, era óbvio que ele tinha um apreço especial em fazer isso, em pensar que eu não passava de um ruminante, em imaginar porque eu e não ele era o morador, porque ele e não eu, um imbecil com firma registrada, era o serviçal, porque eu, que passava o dia inteiro enfurnado naquele sala e quarto morfético e tinha aquela aparência de zumbi, porque eu, que fora abandonado, pelo menos era o que ele supunha, porque é que eu é que tinha poder sobre ele e não o contrário, mesmo que fosse um poder esdrúxulo como instruir vigias e quejandos, ele se deliciava com a possibilidade de me dar o troco, de tripudiar e quem sabe até de esconder a carta, a carta que ela me mandava religiosamente toda semana, o fim de semana se aproximava e eu ali parado olhando aquele cretino me inquirir de novo “algum problema, senhor?”, o senhor bem marcado, dito com o lado da boca de maneira insolente, tudo arrumado de forma a alcançar a humilhação perfeita e então a idéia de que a carta havia sido escondida de mim, e quem sabe até vilipendiada, me dominou de tal forma que a respiração ficou difícil, ficou pesada como se ela ainda estivesse ali fazendo as malas e me dizendo que as coisas iam acabar se endireitando, as coisas iam acabar dando certo, mesmo que pra isso nós tivéssemos que andar por caminhos diferentes, e de fato nós andávamos e a encruzilhada não chegava e eu me sentia desanimado, com vontade de ficar por ali mesmo, pelo meio do caminho, e aquele filho da puta achando que era tudo muito simples, que a vida era abrir e fechar portas e, de vez em quando, manobrar um carro, pois bem filho da puta, disse eu desnorteado e ciente de que ele estava a par de tudo, pois bem idiota, pois bem porteiro, pois bem ser comum às dependências do prédio, sabedor das mazelas íntimas ou não de proprietários e inquilinos, os olhos arregalados, ele disse, ele afirmou “o senhor não está bem!” com firmeza na voz anasalada de retirante, ele quis me dizer se acalma, como se esperasse algo louco de minha parte e então eu não o decepcionei e berrei “não, animal, não estou bem, mas vou ficar!” e parti pra cima dele como quem ataca um prato de comida depois de dias sem comer, e esta era quase a minha condição, mas eu não contava com a resistência dele, o que me deu ainda mais raiva e nós rolamos pela mesa, derrubando a cadeira da qual ele havia se levantado e acabando no chão, e nessa queda eu tive mais sorte e caí por cima esgoelando o afanador de correspondência alheia e gritando “cadê minha carta, filho da puta cabeça-chata?!”, “cadê a carta, pau-de-arara?!”, “cadê a carta, corno paraíba de uma figa?!” e aí eu acho que exagerei, acho que pau-de-arara e corno paraíba foi um pouco demais e ele também deve ter achado o mesmo porque quando eu vi eu já tinha voado pro outro lado da portaria e estava batendo com a cabeça na parede, ele então veio pra cima de mim, já totalmente fora de si, eu me levantei e nós começamos a trocar socos e assim ficamos até que eu me desviei de uma investida dele e lhe dei um chute no saco com o qual ele quase arriou, mas pau-de-arara é um bicho resistente e aí eu disse isso pra ele “pau-de-arara é durão, né? tu vai ver a dureza agora!” e mandei-lhe uma marretada na cabeça, só que eu não podia ter escolhido lugar pior do que aquela cabeça dura da porra e ele se aproveitou do meu instante de dor e me agarrou pela cintura, me derrubando e levando os dois pro chão de novo, ele por cima, e ele caiu socando a minha cara mas não pegou bem e então consegui tirá-lo de cima e resolvi acabar com aquela situação estapafúrdia jogando o babaca no vidro da entrada da portaria, mas na hora h o síndico, que estava chegando, viu a confusão, abriu a porta e foi tentar apartar e justamente nesse exato momento eu tinha conseguido armar uma alavanca pra arremessar aquele jumento porta fora e foi exatamente isso que fiz, só que não contava com a participação do síndico, que me segurava pela camisa no instante do arremesso, e então o que aconteceu foi que nós três voamos pela porta, rolando ridiculamente pela escada e caindo ainda mais ridiculamente no canteiro do prédio, estatelados e conscientes do que poderia ter sido com todo aquele vidro ali e, justamente por isso, o síndico convocou uma assembléia extraordinária urgente, na qual foi decidido que um ser perturbado como eu não poderia habitar um edifício residencial e respeitável, um pardieiro familiar como aquele; obviamente que tudo isso aconteceu à minha revelia, não fui convidado pra tal reunião e mesmo que fosse não apareceria, é uma questão de interesse e o meu único interesse é saber da carta, a carta que aquele infeliz disse não saber nada.


[1990 e tal]



5 Comments:

Blogger Vânia Vidal said...

e como diria Nietzsche, em relação ao pau-de-arara fp: -o ressentimento é uma praga!!
hehe Mr. kaspar, às vezes o senhor beira, enormemente, a borda.
As seqüelas, ah as seqüelas...
Muito bom.
abraço

23 março, 2006 15:30  
Anonymous Anônimo said...

mt bom esse comment, mme v.v.
realmente, a praga é tb um ressentimento — dos deuses talvez.
o fato é que a borda se beira por um tempo de aprendizado, que dura a necessidade de quem aprende, mas o bom é depois, se se aprende, e podemos nos dar a liberdade de fazer uns pequenos bungee-jumps no abismo.
saludos,
a gerência agradece a assistência dileta e altamente simpática.
o dono da casa

24 março, 2006 02:29  
Blogger Luciana Gaspar said...

digo que muito bom é o comentário do comentário. A irmã do dono, orgulhosa, mas intimidada pela genialidade do irmão, ainda se sente despreparada para comentar o texto em si...

24 março, 2006 14:06  
Blogger Luciana Gaspar said...

Posso dizer apenas que gostei muito? Ou é pouco...?

24 março, 2006 14:37  
Anonymous Anônimo said...

lula,
está muito longe de ser pouco.
e o textinho tem mais que o dobro da idade da ju.

26 março, 2006 02:05  

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