sábado

trem



encontro contigo, caminho noturno,
desço do trem, plataforma nublada,
velho filme de estrada, um chapéu voando,
nos enganamos de novo e nos beijamos

sentado no café da estação vou ouvindo as gravações antigas dos nossos ruídos, sei exatamente onde estão os seus, por cima, por dentro, embaixo de mim, ao meu redor, e os meus pequenos urros abafados por um novo gemido imperativo chamando por você

a sombra da chaminé se move e me leva junto, estou na janela observando o movimento da cidade que fica para trás, no vidro vejo o reflexo do meu rosto e me assusto, estou distante demais deste compartimento, por fora o vento se exibe no campo ondulado, perder-se é fácil demais nas planícies, é hora do lanche diz alguém ao meu lado

dizia alguém então a meu lado que o amor é inapreensível, sua função é criar desconhecimentos, inapreensões, eu diria olhando o mar tão azul, mas a poesia é para os que têm alma de poeta, para quem sabe conviver com o imaterial, com o fugidio, com o mundo em fuga, dispersão, cummings

aos poucos ele começou a engatinhar, babando sorridente a camiseta e o chão, o teto lá em cima, bela varanda para o nada da cidade que nos consola, sentei tantas vezes na soleira dessa vida de filme, alguma coisa fumável entre os dedos, alguma coisa que pudesse medir o tempo da felicidade, ela chegando do trabalho

imagino uma vida seca, descarnada, sem música, uma vida de ruído, sem dobras, sem curvas, uma existência unidimensional, um contraponto, contudo quero distância do que me oprime, tenho medo da opacidade e da certeza alheia

o vendedor afirma que só temos a ganhar, e dessa forma ele também pode ganhar o seu próprio, um remédio e um copo d’água, novos pneus para meu carro, obturações físicas e espirituais, lá vamos nós de mãos dadas pelo parque comendo pipoca, dia quente, pessoas se bronzeando emplastradas com óleos esbranquiçados, lá vamos nós mais uma vez

no jantar sento-me à mesa com duas senhoras, que o mundo já fora, voltaram à cidade em 19.., irmãs, começaram como tradutoras, campo fértil a ser explorado, e em pouco tempo eram ambas as secretárias favoritas do presidente da firma, dormiu primeiro com a mais nova, a primogênita também tinha o patrão em alta conta, entende?, logo dividiam apartamento financiado pelo garboso senhor e também a cama, está impressionado?

criar desconhecimentos, passo para o balcão, o barman puxa conversa desinteressante, arrasto o copo de volta para uma mesa qualquer perto da janela e acalmo a noite com meus olhos, de quando em quando uma ou outra luz ao longe e o som incessante do movimento contínuo, o trem como a vida, o tempo arremessando

ela chega, ou já seria outra, e me olha de cima, por baixo, avalia, o tempo é nosso, ainda que para nada, arremessados adiante sem nunca chegar lá, trânsito eterno, então segura o meu braço e vê a tatuagem, a disciplina não é o meu forte, eu digo, entendo, ela alisa a mandala dizendo baixo, o vagão não está quase vazio

ele cresce a olhos vistos, onde estarei quando?, segura minha mão, hora da escola, vamos andando, a professora me olha de forma estranha, ele é um garoto fora-de-série, você sabe que isso pode não ser bom?, eu pergunto, ela não entende, unidimensional, as coisas podem ser vistas etc, digo, estão abertas, vários lados, cimabaixodentrofora etc, única dimensão unidimensional, o que será do meu filho?, quem será o meu filho?

o balcão agora está vazio, escuto sua voz, o meu quarto tem cama de casal, o meu também, poderia ter dito a troco de não muita coisa, contudo sentei no balcão e ouvi o mundo unânime do barman, aqui estou, não paro um minuto, como as pessoas são solitárias, uma vez uma mulher, minha mulher, uma namorada em cada estaç, estou dormente

talvez já esteja dormindo, não está, cá então estou, suas mãos são macias, eu também, modéstia à parte, nos beijamos com desejo alcóolico, cigarro entre os dedos, sentado olhando a noite recebendo seu amante mais ardente e regular, um amante condenado a amar o sono da amada, noite eterna em claro

será você meu amor primordial? a cabine está bastante agradável neste momento, o sol da tarde cuida da saúde do campo seco mas florido, todas as paisagens são iguais se estamos de fora, tudo é igual se não mergulhamos



[set.2001]

2 Comments:

Blogger lugatt said...

Lindo texto, e extraordinary drawing. Bravo!

18 fevereiro, 2006 12:44  
Anonymous Anônimo said...

milles merci, dear.
o trem como a vida.

18 fevereiro, 2006 23:42  

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