sexta-feira

Sangue Alvinegro (a doença iii)

de novo – Pulo nas costas da velocidade do som e do carro. Passo todos os sinais, abertos pra sempre, e sigo contando os carros passados.
A janela do carro vibra ao som da juventude sônica, uma canção para Karen. O máximo do volume, as janelas fechadas – menos a do motorista. Ouvi a história de uma cantora que morreu ao atravessar a ponte (rio-niterói), uma pista de alta velocidade, com a janela do motorista aberta e todo o resto fechado. O carro capotou. Desde então, só ando desse jeito, mas não há na minha boca nenhum gosto de cambalhota. De qualquer forma, eu acelero. O caminho é um só: avenida das Américas, uma estrada de cactos pra mim, pra minha visão eterna de desertos; corto o México e a Austrália e qualquer outro lugar onde exista um coiote cruzando poeira.
Decido fazer o caminho da praia, então não subo o morro e chego ao outro lado, só contorno o trecho da base que leva ao mar, e chegando lá paro o carro, salto e me estiro na areia.
Na volta o primeiro acorde começa baixo e então explode no vidro titanium exposè e o cara canta waking up i see you, acordando eu te vejo, aonde?, open your eyes to see, mas meus olhos estão arregalados faz tempo e continuo a não enxergar. A música eu enxergo dentro da cabeça, correndo no sangue e pela espinha, movimentando pernas, pondo óleo na engrenagem, fazendo os cactos passarem mais rápido.
Na praia fiquei pensando em ir até o céu e comer algumas estrelas. Dormi.
Em casa, garrafa d’água na mão, ligo a televisão quebrada. Velhos hábitos não morrem nunca. Acontece uma pequena explosão, curto-circuito, e um pouco de fumaça. Velhos hábitos são foda. Desligo a máquina destruída e fico olhando a noite pela janela enquanto aperto, acendo e queimo a erva. Velhos hábitos nunca morrem.
Bebi toda a água da garrafa e passei a noite olhando pela janela.
Venho pensando em fazer uma tatuagem, dar um troféu aos músculos. Só que acabo desistindo, ou melhor, esquecendo. Acho coisas melhores para fazer com o dinheiro. Ou coisas para se fazer sem precisar gastar nenhum, qualquer dinheiro. Como queimar o currículo. Foi como uma fogueira no centro da taba, e eu, o índio no êxtase, pulando dançando e cantando à sua volta. Antes eu não sabia como fazer para aplacar a sede, era como tentar cortar o pescoço de um zumbi com a foice de ouro de Panoramix, um trabalho hercúleo; então troquei-a pela foice da Morte, maior e mais pesada, uma foice de ferro. Gostei tanto que queimei o diploma de imbecil superior em seguida, cumprindo o mesmo ritual, só que ouvindo o hino glorioso, o hino do Alvinegro.
Nesse dia saí correndo pelas ruas, na madrugada, cantando o hino feito um louco, como o Madman Mundt no corredor flamejante do hotel, só que eu estava inerme, minha felicidade não precisava de nada, apenas que eu cantasse: “Tu és o Glorioso/Não podes perder/Perder pra ninguém”. Aquilo ficou se jogando de um lado para o outro na minha cabeça: eu sou o Glorioso, não posso perder, perder pra ninguém, não posso perder. Agora o que eu canto é que não posso perder o que não tenho.
Eu ia correndo com a camisa amarrada à calça, descalço, sentindo o vento bater no peito, e quando consegui parar de pensar em não perder, que não é a mesma coisa que pensar em ganhar, apenas me concentrei em cantar e esbarrei na abstração.
Voltei para casa com as veias cintilando sob a pele fosforescente, eu via toda a energia atravessar meu corpo.
Salve!



[1991]