domingo

tamanho grande

1: camisa-de-força

pego minha garota pela mão e saio batido pela porta dos fundos; entro no carro, chave na ignição, pé no acelerador, fita no tape, engato a primeira, a segunda, vamos deixando o estacionamento, terceira, ela não fala nada, então aumento o volume para não ter que ouvir esse silêncio.
aciono o controle automático das janelas e posso ver seu descontentamento enclausurado; ligo o ar condicionado, piso mais fundo no acelerador, o carro respira como um tuberculoso, ela me olha, não diz “esse carro é uma merda”, ela põe o cinto, ela pensa “esse cara é uma merda”, eu sei.
a curva se aproxima e ela sabe que eu não vou diminuir; é só dar um pequeno toque no freio antes de entrar, reduzir para quarta e terceira, usar o freio motor, segurar no braço, ela não entende, eu não caibo nesse molde que ela tem, as coisas ficam apertadas como camisa-de-força, eu sou tamanho grande.
meus braços são fortes e a curva fica para trás; ela não sabe até quando vai agüentar, ela pensa “essa foi a última”, ela está irriquieta, abaixo os vidros, lhe dou ar puro, ela sabe que eu não me importo, posso explodir o carro num poste ou qualquer outro lugar que se apresente, o carro também é pequeno, me comprime, acelero, olho para ela, “cavalo-de-pau” eu penso, puxo o freio de mão, viro o volante, o carro empina e sai capotando.


2: cavalo-de-pau

(dentro: carro vira, carro roda, não há mais importância, está tudo tão longe e isso, o vidro, a morte, a força, o sangue, o instante que não termina, isso circula, exige, quer, está perto, tão perto, puxando, destronando, interligado, é ai que eu vivo, o esmagamento que me tira do molde, me tira do corpo, esse lugar apertado, a vibração, o molde projetado para fora do recipiente, minha carne rasgando o vidro, eu fora do painel, ar, gosto doce, minha cabeça em perfeita ordem, é nessa precisão, no momento absoluto, que eu sou, que eu sou eu, vivo, fora da camisa-de-força, fora da roupa eterna, destravado, o carro capota mas eu entro reto nesse caminho, meus pensamentos só embolam no molde, na fôrma, na indústria, na fábrica, saindo fresquinhos da linha de montagem, devorados como glicose pelo sangue medroso, rodando, tudo, minha cabeça em linha reta, como o poema, minha vista fixa em ponto único, a frente, minhas mãos presas ao volante, fecho os olhos para enxergar o caminho, nada atravessa a mente, a minha, nessa hora, calmo, relaxado, tranqüilo, espaçoso, flutuando, não existem os zunidos, explosões, gritos, flashes, a tormenta do molde, minha carne rasgando o vidro, gosto doce
)fora: o carro roda, vira, meu corpo acompanha desgovernado dentro do recipiente, ela permanece presa à faixa, incólume, a cabeça permanece presa às imagens, estática, é rápido demais, demora a registrar, o pavor é quase só susto, incredulidade, pulmão explodindo, coração na boca, o corpo tremendo, frio, preso ao cinto, acomodado, meu tronco atravessando o recipiente, quebrando o invólucro, saindo, ar, as mãos presas ao volante, voltando, gosto doce, acomodando.



3: freio de mão

o carro capota pela última vez e, como um gato, cai sobre as patas: é melhor odiar alguma coisa que está viva, meus olhos faiscando, “você é grande demais pra tudo isso, não é? grande demais pra toda essa merda, filho da puta!”, eu não enxergo nada, não enxergo o sangue, não enxergo o pára-brisa quebrado, eu só vejo o tamanho, começo a socar esse monte de carne, um quebra-cabeças com peças faltando, meu coração quer sair da boca, arranco o cinto para socar melhor, até cansar, o sangue não esfria, o vermelho não sai de dentro dos meus olhos, tento sair, a porta não abre, eu insisto, começo a esmurrar a janela, tenho que sair, minha cabeça quase explodindo, forço mais a maçaneta, a porta abre finalmente, eu saio, minhas pernas tremem, consigo ficar em pé, vou andando, vou embora, vou deixando para trás, apagando a tatuagem, o carro vai desaparecendo, olho para trás pela última vez, ele está sentado, as mãos no volante, esvaziando.


[1996]