segunda-feira

o ápice




passo grande parte do meu tempo escondido talvez imaginando que o ápice da minha existência já aconteceu a aurora da minha vida passou mas se passou quando foi que não vi esse momento tão mágico aonde estava eu é possível que estivesse dentro da caverna é lá que passo boa parte das horas é lá que mantenho minha vida de toupeira enfurnada na toca

ontem resolvi fazer algo diferente quem sabe descobrir que o apogeu dos meus dias ainda está por vir então tomei uma condução para o centro desse lugar que eu nem sei o nome se é que tem um e quando cheguei no ponto final saltei em busca de iluminação já que estava meio vazio de idéias ou pelo menos vazio de uma forma digna de fazer o que estava disposto a fazer

sentei na praça e fiquei esperando tomar coragem esperando acontecer alguma coisa um impulso sei lá e nada acontecia apenas eu sentado ali com meus escritos como se um peso muito grande me mantivesse debaixo d’água no fundo do mar e as pessoas iam para lá e vinham para cá mas ninguém reparava no náufrago escondido dentro da embarcação destruída

de algum lugar explodiu e então me levantei como se nunca estivesse estado em outra posição subi no monumento no centro da praça e comecei minha pregação literária e aos poucos foi juntando gente que pela expressão facial me tomava por lunático e eu dizia passo grande parte do meu tempo escondido talvez imaginando que o ápice da minha vida já passou EU VIVO EM CAVERNAS

em pouco tempo meus ouvintes meus assistentes começaram a me vaiar calorosamente dizendo coisas como sai daí palhaço maluco imbecil ou então se joga logo e cala a boca mas eu estava tomado por algum espírito falastrão declamador pregador e continuei minha ladainha cuspindo setas flamejantes na cabeça deles todos de cada um e de nenhum já que tinham o crânio revestido de cimento

como nada acontecia eu continuava a falar e eles continuavam a vaiar alguém teve a idéia de jogar pedras o que realmente foi um sucesso de público contagiante e em pouco tempo minha testa estava rachada e sangrando e com dois dentes quebrados dentro da boca rasgada acabei caindo lá de cima e me espatifando no chão de terra da praça sob o olhar complacente da turba

abri os olhos e me deparei com o sol queimando meu rosto e um gosto de sangue adoçando minha boca percebendo sombras ansiosas ao meu redor comecei a me levantar e ninguém moveu um dedo ou uma palavra e fui andando e eles foram ficando mas eu estava um pouco tonto e o espírito falastrão se aproveitou e mesmo babando vermelho me virei e gritei O ÁPICE NÃO EXISTE filhos da puta

como numa largada de cem metros rasos eles vieram bufando na minha direção talvez tentando provar que cada um tinha a própria mãe fosse ou não uma rameira profissionalizada e junto com eles vinha também uma chuva de pedras terra pilha e sabe-se lá o que mais e então saí correndo da praça tendo a malta de malnascidos às costas gritando VOCÊS VIVEM ENTOCADOS cavernáculos jumênticos


peguei a primeira condução a aparecer e deixei tudo aquilo para trás sentindo que a minha noção de ápice derretia e conseqüentemente toda a estrutura dos meus dias estava comprometida pois a caverna não é um privilégio meu ela é uma idéia difundida e sua linguagem é o grunhido uma comunicação direta e objetiva na vida encavernada mas isso eu já sabia

confuso e sem saber o que fazer acabei voltando ao começo de tudo à filosofia da toupeira entocada só que ciente de que os picos do gráfico-vida são por demais voláteis e a linearidade é a verdadeira viga-mestra mas aonde me encontro se me mantenho linearmente enfurnado escondido encavernado e invisível justo por causa do apogeu nunca alcançado

tentando obter uma resposta começo a fazer gráficos hiperbólicos e mirabolantes sobre a minha posição mas não chego a lugar nenhum e percebo que sair do invólucro que forjei talvez seja o princípio de uma resposta mais longa então abro a concha e boto a cara para fora como um pinto que sai da casca prestes a ver o lado claro mesmo que para descobrir que é tudo escuro


[2.9.96]