terça-feira

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Um diabo entrou no ônibus hoje à tarde. Sombra preta por fora e por dentro. Ele atravessou a roleta enquanto passava o revólver da cintura para a mochila. Por isso a polícia veio no encalço mais rápido que o inabitual. Anunciado o assalto, houve uma confusão, pessoas correram, saíram do ônibus. A polícia cercou tudo. O diabo controlou o ambiente com o caos. Apresentou o terror a todos e se disse teleguiado pelas trevas. Ordenou que uma moça, que seria assassinada pela polícia mais tarde, escrevesse com batom frases terríveis e alucinadas no vidro do ônibus. Ela teve o cuidado de imaginar o espelho, rabiscando invertido para que todos pudessem ler perfeitamente do lado de fora. Nessa altura, a transmissão da tv já corria a pleno vapor, com cortes e comentários de desespero despejando angústia na audiência crescente. O diabo deu uma demonstração interminável do que é o inferno. Do que era o inferno particular que mastigava suas entranhas. Ele precisava mastigar o intestino alheio. Então continuou com seu exercício de horror. Dispensou alguns passageiros. Manteve as moças e as senhoras. Enfiou o cano da arma na boca de uma das passageiras. Fingiu matar uma outra e mandou que ela se deitasse simulando o próprio fim. Correu de um lado para o outro com o revólver em punho. Prestigiados policiais de elite estavam postados para devolver o diabo à residência dos caídos, aos quintos. Continuaram a postos. O diabo era um diabo menor, seu inferno era pequeno mas abismal. Enquanto esteve naquele ônibus afogou vítimas e público na sua doença de ódio. Nenhum pedido foi aceito. A moça mais amedrontada foi a escolhida para descer do veículo como refém. No asfalto, uma conversa para tentar resgatar a menina. Quando as coisas pareciam se encaminhar, um policial que estava agachado se escondendo por trás do ônibus, com a cabeça cheia de cnn e filmes americanos sobre grandes heróis da lei, se lança na direção do diabo e dispara repetidas vezes. Confusão. A multidão que acompanha a cena in loco quer invadir o cordão de isolamento e linchar o diabo. Os policiais seguram o corpo desfalecido da moça e espancam o diabo. Ela está morta. O diabo é enfiado num camburão com alguma dificuldade. Ele está vivo demais e será executado no caminho até o hospital, porém o inferno não vai sair do camburão, nem do ônibus, nem das câmeras, nem da lembrança de ninguém, nem da menina apavorada que morreu no horror. O aroma e a carne do inferno. Pior que viver no inferno é morrer no inferno.
No dia seguinte, a grande discussão foi em torno da estratégia equivocada utilizada pela polícia: que ação atrapalhada, em vez de chutar contra o adversário, o jogador atirou contra as próprias redes. O medo anestesia. O medo aliena. O medo busca saídas para si, quer fugir de si. Essa é a vitória do inferno.

[13/03/2002]






série "sertão" 34, 35, 36 e 39.