sábado

33/45 (notas musicais são sirenes)

acelerando a rotação, tudo é muito rápido para estar errado. fico ouvindo discos 33 em 45 até se instalar o vírus, dor de cabeça. tiro os fones e continuo a ouvir os zumbidos combatendo o meu cérebro. a vitória não é individual, a vitória é simbiose, é o pensamento tiroteio, rastejando por um momento de tranqüilidade e incorporando os disparos. que tudo se confunda é inevitável, a vitória é derrota. saindo na rua, pego o primeiro circular e fico indo e vindo, circulando dentro e fora da cabeça. na verdade, dentro não comporta circulação e sim torcida comemorando gols sucessivos, zunindo. existe uma outra troca que é entre a melodia dodecafônica do trânsito e as aceleradas e agudas notas musicais que me espetam por dentro. à medida que as freadas e os engasgos enfumaçados vão entrando, sons esquisitos saem pelo meu nariz e vou sentindo pontadas na garganta, uma sensação de regurgitamento, o tiroteio aumenta, as cordas vocais se rebelam, sinto um tranco e atribuo o fato ao tráfego, mas quando vejo estou vomitando as 45 rotações nos outros passageiros, cuspindo frases de efeito, desconexas e absurdas, como "o mundo dos parasitas é um mundo de sangue medido!" ou "janis joplin grita muito alto!". nessa hora, entre os assustados que encaravam minha trânsida figura, alguém retrucou "o jimi tocava mais alto!" e isso meio que cortou o surto, mas ainda me vi grasnando "dardos! minha cabeça é um pub irlandês!", então a fumaça começou a envolver a música e fui entrando dentro de uma nuvem, fiquei isolado e perdi o controle.

abri os olhos e me vi cercado de sirenes. elas tinham forma humana porém eu só escutava o alarme disparando, a ambulância apostando corrida com o carro de bombeiros e o camburão vindo na cola ensandecido. uma delas veio na minha direção e percebi que era o médico-sirene. ele sorriu amarelo e quando abriu a boca, ouvi o que provavelmente beethoven ouviu para ficar surdo. meu cérebro entrou em curto-circuito e meus olhos saltaram das órbitas; em pane, meu corpo inteiro tremeu e, em seguida, enregelou. apaguei.

Dei um pulo da cama, desesperado, o coração na penúltima rotação possível, suando frio. Olhei para o meu aparelho de som, o estômago dando coices, e senti que, de alguma maneira, ele me encarava, irônico. Enfurecido, parti pra cima, desconectei os fios e joguei os três módulos do gradiente ds-20 pela janela. O barulho fui gutural, e não seco como eu esperava. Olhei para baixo e o opala de alguém estava destruído. Cinco minutos mais tarde a campainha tocou. Ainda transtornado, atendi e era o vizinho do 705. O opala era dele. Alguém deve ter visto ou ouvido alguma coisa. Não me importei. No começo até que eu ouvi tudo muito bem, apesar d'ele estar mais interessado em cuspir do que em articular frases. Então, a voz dele foi ficando rouca, o ziguezague começou, a nuvem foi me envolvendo e pequenas notas musicais, agudas e aceleradas, foram escorrendo pelo meu nariz e pelas minhas pálpebras, saindo pelos ouvidos. Senti uma pontada na garganta, a visão secando. Pisquei os olhos e me deparei com um legítimo representante dos homens-sirene tocando trombone. Senti um tranco e achei que era ele me atacando; meus punhos se fecharam, parti pra cima e nesse instante tudo ficou branco.

Agora estou aqui na janela observando aquela nova aparelhagem de três módulos: o vizinho-sirene do 705 e o ds-20 abraçados dentro do opala (e esperando as notas se acalmarem, voltarem à rotação normal e desacelerarem minha cabeça).

[1993]